"Eu considero Guaraqueçaba um pequeno mundo dentro do mundo"
- Padre Mário Di Maria - (12/07/1974 - entrevista ao Jornal Diário do Paraná)

10 de dezembro de 2009

Parteiragens e benzimentos - sabedorias caiçaras

por Zé Muniz

Numa região em que o acesso ainda (em tempos modernos) é difícil e restrito, não é de se assustar o fato de que em muitas comunidades, os doentes e feridos recorram aos cuidados de benzedores e curandeiros para as mais diversas enfermidades, ainda que atualmente em decadência, era este o único auxílio nas redondezas até bem pouco tempo atrás.



Chegada na Barra de Ararapira
foto: Zé Muniz

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O Jonal Maré de Lua, publicado há alguns anos atrás pela SPVS, trazia o seguinte relato sobra a parteiragem na Barra de Ararapira:

"nascida na Barra do Ararapira, ela tem 70 anos e fez seu primeiro parto aos 35, um ofício que aprendeu com sua mãe. Setenta - esse é o número de crianças que Genésia já ajudou a nascer e, como faz questão de ressaltar, sem cobrar nada. Toda essa experiência permitiu que adquirisse amplo conhecimento sobre todos os procedimentos que envolvem um parto realizado em casa. Cuidados com a higiene, misturas de ervas e alimentos corretos para ajudar na recuperação da mulher e diferentes tipos de simpatias que, conforme contam os mais antigos, garantem a saúde da mãe e do bebê. Segundo Genésia, o parto mais difícil que já fez durou dois dias e duas noites. Mãe e filho sobreviveram. Graças a Deus, nenhum neném nunca pereceu na minha mão., conta ela, que tem 9 filhos. "Muitas crianças que ajudei a colocar no mundo me pedem a benção até hoje". "Elas são, como diz a expressão, meus netos de umbigo", completa".

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no ano de 2004, em conversa com Dona Genésia Cunha, na comunidade de Barra de Ararapira, pude registrar alguns segredinhos sobre seu conhecimento, afirmando ela já ter realizado 70 partos, possuidora que é de um conhecimento que aprendera com sua mãe e sua tia, antigas e reconhecidas parteiras da região. Dona Genésia tem “neta de umbigo”, como chama as pessoas que trouxe ao mundo, na Barra de Ararapira, em Iguape, Matinhos...
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"nunca pensei em ser parteira, isso vem de Deus, quando ele quisé. Minha mãe começo a conta como era assim pra mim, porque antigamente ninguém sabia de nada, hoje em dia tudo mundo sabe. Minha tia desde o tempo que ela cuidou de mim, então ensinava tudo os pontos.Eu não tinha medo, com fé em Deus ficava só esperando Deus pôr em minhas mãos pra mim trazê ao mundo. Quando nascia só eu via, depois de tudo terminado eu contava se era menino ou menina pra mãe. Depois a família via. tem o remédio que fazia quando ele vinha na minha casa pra fala comigo, falava e marcavam comigo, marcavam a data e depois daquele eu não podia sair pra parte nenhuma, ficava só esperando né. As vez chegava meia noite, de madrugada em casa, podia tá chuva ou vento, tinha que ir mesmo, saia debaixo de chuva, de tempo mesmo, as vez quase morria. Eu usava só uma tesoura pra corta umbigo, mais nada. Mede 03 dedinho assim no cordão, amarra e corta, passava 2, 3 dias e já cai. fazia um banho bem forte com água e sabão virgem, sem uso. Em croca era lavado as mulheria nas cadera, barriga aí você olha no ponto pra vê que jeito tava.Depois daquele banho aí se o tempo demora muito, pegava um pano da cozinha esquentava pra passa na barriga da mulher, aí vem a dor. Nessas alturas já veio muita criança na minha mão".

Dona Genésia e seu esposo João Martins (In Memoriam)
foto: Zé Muniz
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Os remédios que fazia era Pé de Galinha né feito chá, também algodão pra banho é, não é muito aqueimado as vez dava vinho quente senão chá de Abuto, de Sene, fervida pra não fica parado, a menstruação descer certo né. Cozinhava Abuto, senão Sene, colocava um pouco de açúcar e fervia. Antigamente elas usavam pinga pra mulheria tomá. Meu, de vontade mesmo era ficar 03 dias no quarto a mulher, a criança saia 08 dias do quarto, pra não fica amarelo. Se a mãe era forte, 03 dias e saia tudo forte sabe, forte e com saúde. Não pegava vento, que eu não deixava. Esse foi o ensino que minha tia e minha mãe me deu, e por isso graças a Deus nenhuma criança morreu na minha mão.

Genésia e sua neta
foto: Jornal Maré de Lua. 2005.
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Cuidei de criança nascida de pé, nascida de bundinha, e cuidei de criança de 02 gêmeos sabe. Das mãe também cuidei, ajudei. O mais difícil foi o da minha filha, deu problema e ela ia ganhá em médico mais ela tem muita fé em Deus e Nossa Senhora, então foi na minha mão que nasceu, hoje tá moça com saúde.
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comunidade de Barra de Ararapira
foto: Zé Muniz
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Eu tinha minhas oraçõezinhas. Antes da criança tem négócio, o dianteiro né, adepois tem outro, sabe que acompanha a criança. Aquele último que é perigoso, se nasceu com complicação alguma coisa então nós dava remédio pra nasce criança sadio. Sabia de tudo o que ia fazer. Aquele troço é preparado. A gente da banho na criança, cuida da criança, da mãe pra ficá com saúde. Esse tipo de serviço a gente fica muito feliz com Deus porque deve a Deus. Nada sem Deus neste mundo.
Depois de tudo pronto, os pais podiam entrar. Só na hora eu não aceitava ninguém, somente eu e Deus, as vez alguma mulher que eu queria muito bem. Fiz muito trabalho, muito mesmo. Só Deus pra me pagar. Nunca ganhei nada meu filho eu nunca trabalhei pra ganhá. Se o cara fosse me agradecer eu pegava, mas pelo serviço eu nunca fiz. Eu conhecia criança que ia nascer com cadera pra cima, conhecia quando de barriga pra baixo, se vinha de pé eu conhecia tudo. No primeiro parto que fiz, eu tava sozinha, a menina mora lá em Paranaguá. Eu não tinha medo, tinha muita fé em Deus, tenho uma afilhada que dizia: “Quando a senhora faz o parto alivia a dor, pra mim”. Nunca tive medo sempre tive muita coragem. Graças a Deus com muita fé em Deus e Graças a Deus deu tudo certo, as mulher que trabalhei. Hoje faço um trabalho só se for de precisão muito grande né. Eu não posso mais, um que já quebrei meu braço, só na grande necessidade, se não tem outro recurso né. Daí sô obrigada. Não pode deixar uma mulher perecê aí né. As vezez tava deitada na cama quente vinha me chamar, tinha que sair na chuva, metê a mão na água do banho que tava quente, tudo vai matando uma pessoa aos poucos né. Se a mulheria tinha mãe eu só fazia o serviço e ia embora, e se não tinha eu ficava e fazia as coisas lá, cuidando da pessoa né, as vez ficava 02, 03 dias. Eu trabalho com meus segredos. Eu mesmo guardo meus segredos. Nunca andei contando meus segredos pra ninguém. Agora pra minha filha eu conto. Pra ninguém fica alarmando falando das coisas. Mais que isso eu não posso falá”.

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ACRÉSCIMO DIA 04/10/2013

faleceu ontem D. Genésia Cunha Martins...

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Benzedeira (peça em argila de Gilson Crespo Anastácio)
foto: Zé Muniz
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A benzedeira Dona Ester (Ilha Rasa)
uma das mais reconhecidas benzedeiras da região, a falecida Dona Ester, que residia na Ilha Rasa, recebia principalmente crianças de toda a região, inclusive de Paranaguá.
Em depoimento ao filme “Terra do Mar”, Dona Ester conta alguns de seus segredos.

“Pois quando eu aprendi a tratar do povo, aprendi com meus pais. Foi com erva medicinal dos mato. Este aqui (mostrando a planta) é pra inchaço de dente sabe, quando tá aquela bola no rosto assim, a pessoa cozinha a folha e faz o gorgorejo na boca. Este aqui (mostrando outra planta) é pra amarelão e este aqui.

(mostrando uma outra planta) é pra ferida braba.

Pois eu sempre saia tratar dos doentes, as embarcações vinham aqui me buscar, dias que eu ia e dias que vinha o doente em casa pra mim cuidar.

(Fazendo carinho e tratando de um bebê, falando pra mãe dele)

Ele tá com febre, agora você pode dar o soro pra ele e depois eu faço um lachanteiro de Maná com Rosa e Erva Doce pra você dar pra ele, mas primeiro vai dar o soro pra ele, que ele tem muita sede.

(Sobre os seres místicos que a ajudam)

na noite de ano eu sempre tô na maré trabalhando, dando os meus despachos pro povo do mar, que é pra Sereia do Mar, Ogun Beira Mar e Seu Sete Ondas. Pra Sereia do Mar eu despacho um barquinho com o bolinho dela, o perfume dela, as coizinhas dela e pro Seu Sete Ondas eu solto uma cerveja porque é o que ele toma e pro Marinheiro do Mar eu dou uma colher de mel pra ele comer, na água, e aí eu faço meus despachos e trabalho e sou ajudada por eles.

(sobre as ondas do mar)

A falação do mar tem segredo, agora os segredos do mar não é todas pessoas que compreendem, que entende, porque conforme que vem aquelas marolas, que ela bate na praia e volta pra traz, alí ela tras o segredo dela e a pessoa precisa ficar na praia, sentada, pra descobrir o segredo dela, bem concentrada e olhando pras águas ou vem bem comprido, ou vem atravessado, ou vem embolado, aí a pessoa tem que prestar bem atenção o que é que ele traz naquilo. Quando ela bate na praia, ela bate e volta, no ela voltar, precisa olhar como ela vai voltando, o que é que ela está deixando por escrito.
(Reclamando da falta de interesse em aprenderem seus conhecimentos)

Meus estudos ninguém quis, ninguém qué aprendê o que eu sei, então o que é que devo de fazer? Devo de fazer é que quando eu morrer, entregar pra quem me deu, devorta”.
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gaivotas em Barra de Ararapira
foto: Zé Muniz

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LANGOWISKI em seu estudo sobre o litoral do Paraná, descreve mais alguns conhecimentos acerca da parteiragem:

"quando a criança demorava a nascer colocava o chapéu do marido na cabeça da parturiente e enquanto esta fazia força para ajudar o trabalho do parto, o marido devia dar várias voltas correndo em torno do rancho. Depois de nascida a criança, se a placenta não era expelida em seguida, fazia no dia seguinte "simpatia": - A parturiente era colocada em posição de cócoras; diante dela a uma certa distância, uma pessoa segurava uma vela acesa que devia ser apagada pela parturiente com um sopro forte. Apagada a vela a parturiente dizia - "Valha-me Santa Margarida, que não estou prenha nem parida". Acendia novamente a vela repetindo a cerimônia por três vezes consecutivas”. LANGOWISKI.

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A parturiente que tivesse qualquer tipo de febre (recaída) era tratada com chá de praturá (gramínea do gênero Spartina - existentes nas margens dos rios com vegetação de mar), devendo tomar 9 banhos com folhas de algodoeiro cozido, para endireitar o corpo.

Uma das recomendações dadas, era que jamais comesse, enquanto grávida, banana incõem (que vem junto com outra grudada), pois seus filhos poderiam nascer gêmeos ou mesmo com algum tipo de deficiência.

Após nascido, não podia visitar o recém nascido no seu 7º dia, caso você não o tenha visto, evitando assim o quebranto (azar).

Para livrar o pequeno dos ataques de verminoses, colocavam dentes de alho enfiados num fio de linha, ao redor do pescoço da criança e quando aparentasse nascer sua primeira dentição, colocavam no pescoço da criança, um colar com sementes de “Guapuruvu”, pois assim acreditavam, que fosse evitar a inflamação das gengivas, podendo também fazer um “Patuá”, onde se coloca uma oração, escrita num papel, dobra e costura dentro de um saco de pano, pendurando depois no pescoço da criança.

Caso fosse sair de casa, sem levar o neném, deve-se pôr uma tesoura em forma de cruz na cabeceira da cama em que estiver o recém-nascido deitado, caso contrário a bruxa vem chupar o sangue do nenêm pela moleira e pode lhe causar amarelão. Esta bruxa pode vir também em forma de pessoas conhecidas, portanto não era permitido deixar a criança sózinha enquanto esta não fosse batizada.
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REFERENCIA:
* LANGOWISKI, Vera Beatriz Ribeiro. “Contribuição para o estudo dos usos e costumes do praieiro do litoral de Paranaguá”. Edição do Conselho Municipal de Cultura. Paranaguá.
*MUNIZ, José Carlos. “Guaraqueçaba Um Pequeno Mundo Dentro do Mundo”. Obra inédita. Do autor.
* SPVS. Jornal Maré de Lua. edição número 03 - fevereiro de 2005.

VÍDEOS:
• CARON, Eduardo. MARTINELLI, Mirella. “TERRA DO MAR”. Bad Company Film Prod. Colorido. 81 min. 1997.

AGRADECIMENTOS:
José Hipólito Muniz, Alziro Pedro, Genésia Cunha.

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acréscimo em 03 de janeiro de 2017
a entrevista citada foi publicada no artigo "Mais que isso não posso falá: notas sobre benzeduras e parteiragens caiçara em Guaraqueçaba-PR"

Um comentário:

  1. simplesmente emocionante. É vida. Parabéns Zé pelo teu trabalho, ele é muito valioso para dar visibilidade a esses que são silenciados pelo barulho atordoante do progresso...progresso?

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