"Eu considero Guaraqueçaba um pequeno mundo dentro do mundo"
- Padre Mário Di Maria - (12/07/1974 - entrevista ao Jornal Diário do Paraná)

13 de novembro de 2009

da Mandioca à Farinha - pirão, bijú e cuzcuz

por Zé Muniz
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Mandioca, Aipim ou Macaxeira, como também é conhecida, está intimaente ligada a alimentação Caiçara, herança direta dos indígenas que contribuiram com a formação desta raça.

Mbyá Guarani (Ilha da Cotinga) - plantação de rama de mandioca
foto: Zé Muniz
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Seu Alcides (In Memoriam) e Dona Isabel - ralando mandioca
foto: acevo da família Martins
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os povos indígenas acreditam que a planta nos foi deixada por influência dos deuses, relatado a seguir:
“o morubixaba tinha-se entregue ao desacanso conferido aos velhos. A mulher tratava da cozinha, escalava o peixe, enfileirava-os nas embiras do fumeiro, moqueava a caça e punha-a de reserva na gamela, para que não faltasse alimento nos maus dias de chva ou de prolongada estiagem. A filha, de ânimo sossegado, elevava a existência singela de outras jovens da tribo. De manhã e de tarde, atravessava a nado o ribeirão, sob os ramos inclinados dos ingazeiros. De volta, trazia frutos e flores, não raro uma cabaça de mel colhido no ôco de um pau. Em casa, tirava as fibras do tucum, fiava e, mediante uma agulha feita de taquara, tecia redes para a pesca. Tratava da arara, cumulava-a de blandícias e de coquinhos verdes. Confeccionava belas redes de repouso, vistosos cocares de penas para os moços da taba, e quando não tinha mesmo nada que fazer, repetia as cantigas de guerra ou de amor que lhe haviam chegado através das gerações. Nada mais singelo, nem mais puro. No etanto, de um dia para outro, sentiu-se grávida. Correu a contar a novidade para o pai, o velho morubixaba. Êste não aceitou, absolutamente, a história que a pobre moça lhe contava, com lágrimas nos grande olhos pretos, doces como jabuticabas. O velho índio sentiu-se enganado e, por todos os meios ao seu alcance, tratou de investigar quem seria o pai de seu futuro neto. Quando chegou o dia do parto, num ambiente carregado, apareceu certo homem branco, daqueles que pela austeridade e pelas atitudes, impunham desde logo confiança. Procurou o velho chefe e lhe disse que, realmente, sua filha se tornara mãe em pleno estado de virgindade. Assim, a jovem índia e sua fihinha encheram o rancho de alegria. Mas ao cabo de um ano, sem qualquer doença, a pequenina Mani (assim se chamava ela) fechou os olhinhos negros e morreu, sendo enterrada nas proximidades do rancho. E, segundo o costume da tribo, sua sepultura era regada todas as manhãs. Certo dia, porém, para surpresa de todos, brotou naquele local uma planta muito bonita a que a mãezinha saudosa, em lembrança da pequenina Mani, deu o nome de Maniva. Desenvolveu-se, deu grossas raízes de leitoso suco. Dela, os índios passaram a tirar o Cauim, bebida que antes era fabricada com outros elementos. E a farinha! A aldeia passou a chamar a planta de Mandioca, em cujo som encontram-se Mani, a criança morta, e Oca, a casa do índio, onde Manivera é aproveitada das folhas às raízes, como símbolo de alegria e abastança”.

foto: Zé Muniz
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Cauim
é uma bebida, fermentada, dos povos indígenas do Brasil, feito da fermentação da mandioca. Pedaços finos de mandioca são fervidos até ficarem bem cozidos e se deixa esfriar. As mulheres se reúnem ao redor da panela; levam uma porção até a boca, mastigam bem, ensalivam e botam a porção em um segundo pote. A pasta de raiz mastigada é posta no fogo, mexida completamente com uma colher de pau até cozinhar, colocada em grandes potes de barro, para fermentar.
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farinha no "cocho" feita no Rio Verde por Dona Cleonice Tobias
foto: Zé Muniz
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Seu Antônio Cardoso, nos cantava a seguinte moda:
“Na Barra de Trepandé / tem um homem se quexando por causa da Mandioca / que o ladrão tava roubando o homem que planta lá / é um homem de pensá ele corta a mandioca / e cepa torna planta”.
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fuso, sendo confeccionado no Utinga por Izidoro Gonçalves
foto: Zé Muniz

desenho de construção do Fuso
Fonte: Alvar e Alvar
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O preparo da Farinha de Mandioca
A Mandioca, após cultivada por cerca de um ano e meio a dois anos, é colhida - a sua rama, decascada, lavada e então vai para o ralador ou "cevadeira", onde um empurra a rama e outro roda o Ralador.


desenho do ralador
Fonte: Alvar e Alvar


ralador ou Cevadeira em Barra de Ararapira
foto: Zé Muniz
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A massa ralada vai para dentro do Tipiti - (cesto feito de timbopeva, uma espécie de cipó, encontrado na mata virgem e caule de folha de brejaúva), onde é expremido debaixo da “Prensa” até ficar seca, enxuta. Abaixo do Tipiti, há uma Gamela, onde cai todo o líquido que escorre da prensagem da massa, chamado de Mandiquera, que após um tempo na gamela, a parte mais grossa vai assentar no fundo – a Goma – restando apenas a Mandiquera, totoalmente líquida.


prensa de farinheira no Rio Verde
foto: Zé Muniz


desenho de prensa
fonte: Alvar e Alvar.
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A massa, retirada do Tipiti, é levada ao forno caseiro, com fogo de chão, onde é “forneado”, sendo mexida, até ficar torrada.
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desenho de forno
fonte: Alvar e Alvar.


forno de Cleonice Tobias Viana (Rio Verde)
foto: Zé Muniz

forno de Iolanda Cunha (Barra de Ararapira)
foto: Zé Muniz
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José Hipólito Muniz e Maria Aparecida Muniz ensinam o preparo da "Renda" ou "Rendinha", como também a chamavam, bem como da Mandiquera:

a renda é feita a partir da goma assentada da Mandiquera. Tempera a Goma com sal e leva no forno já quente para derreter. Faz-se fino e pequeno. Era como uma brincadeira pra comer. Já a Mandiquera, tem que aproveitá numa Gamela, a Mandiquera que sobra da massa prensada, ferve, mais ferve mesmo e pode até colocar um pouquinho de Goma. Depois que esfria fica igual um pudim. Mais é gostoso mesmo”.
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"burro" - outro tipo de prensa - farinheira de Barra de Ararapira
foto: Zé muniz
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Dona Durçulina Fagundes Eiglmeier, nos ensina a dica da "Broinha de Goma":
“Relava a mandioca, exprimia e deixava 8 dias ali a goma com a mandiquera. Azedava a goma né pois não tinha fermento naquele tempo. Punha no sol por 3 dias, enxugava bem enxutinho aquela goma. Depois passa no forno e podia guardá até ano. Misturava a goma com gema e a clara tinha que batê e deixá espumada pra misturá na massa pronta. Amassava bem. Faziam em dois ou três dias antes, era feita latas cheias, preparadas mais no tempo de casamento, batizado ou baile mesmo”.
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Iolanda e Celmiro Cunha no "tráfico" como chamam a Casa de Farinha (farinheira)
Barra de Ararapira
foto: Zé Muniz
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Biju de Mandipuva (ou Mandipuba), por Dorçulina Fagundes Eiglmeier

Arranca a mandioca de ter um ano e meio e escolhe só as grande. Corta o jurupú (parte que liga mandioca na raiz), o talo e risca a mandioca (fazendo cortes, para facilitar no descascar). Fazia uma poça, um buraco, cortava bastante folha de bananeira, forrava bem forrado o buraco, punha a mandioca e água. Daí cobria com as folha da rama mesmo e depois bastante folha por cima e mais terra por cima pra bicho não entra. 3 dia (ou mais dependendo do sol) e tava ela (mandioca) boiando de molinho. Daí a gente tirava dali, lavava na fonte e punha água, levava o tipiti e a gamela. Ia lavando e descascando e bem lavado ali. Aí rala, põe na prensa e deixa mais ou menos bem enxuto, pega soca bem socado, torna a prensa e vai indo, até que fique igual farinha de trigo. Depois faz o biju no forno pra corta tudo em pedacinho. Tem aquele chero forte”.
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desenho de Tipiti
Fonte: Alvar e Alvar.
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... ainda tem os bijús de Goma, de Tapicoa, de Cuscuz, os pirão do Mesmo, de Jacuva, o Escaldado, o Carago, etc... Tudo com farinha de Mandioca - a preciosidade, essencial na vida Caiçara.
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REFERÊNCIAS:
ALVAR e ALVAR, Júlio e Janine. Guaraqueçaba mar e mato. Curitiba: Editora da UFPR, 1979.
POSSE, Zulmara Clara Sauner (org). A Arte das tradições populares. Curitiba: Ed. da UFPR, 1996.
MUNIZ, José Carlos. Guaraqueçaba um pequeno mundo dentro do mundo. obra do autor. inédito.
MUNIZ, José Carlos. Fandango na alma de minha Guaraqueçaba. obra do autor. inédito.
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Para saber mais sobre a lenda:
Afonso Schmidt, baseado em Ciro Dutra Ferreira, Ivo Sanguinetti, J. C. Paixão Côrtes e Luis Carlos Barbosa Lessa, do Centro de Tradições Gaúchas, em Lendas Brasileiras, Livraria Pluma, Porto Alegre. IN: Antologia Ilustrado do Folclore Brasileiro. Estórias e Lendas do Rio Grande do Sul. Gráfica e Editora Edigraf Ltda. São Paulo