Talvez seja esta uma postagem diferente, no
mínimo difícil para mim, pois rememorar a vida de meu pai é também lembrar as
suas lutas travadas diariamente que permitiram a nossa família, sobretudo a
minha existência.
Papai, José Hipólito Muniz, Zé Muniz ou somente Téco, como é conhecido em algumas comunidades, principalmente em Barra de Ararapira, onde nascera em 30 de janeiro de 1945, tem relevante atuação na vida cultural, espiritual e profissional, ao menos do povo caiçara, na região de Guaraqueçaba.
Papai, José Hipólito Muniz, Zé Muniz ou somente Téco, como é conhecido em algumas comunidades, principalmente em Barra de Ararapira, onde nascera em 30 de janeiro de 1945, tem relevante atuação na vida cultural, espiritual e profissional, ao menos do povo caiçara, na região de Guaraqueçaba.
Museu Vivo do Fandango foto: Felipe Varanda |
Paranaense, é nascido naquela exuberante praia - Barra de Ararapira - que faz divisa com o estado
de São Paulo, hoje área de proteção permanente, mas por aquele mar e mato
trabalhou em pequenas lavouras de subsistência, com plantações de rama e maior
destaque à atividade da pesca artesanal, praticada no “mar de fora”, quando
atravessam a terrível “barra” e vão de encontro com o oceano, a cacear, lancear
e arrastar, principalmente camarão, mas também algumas variedades de peixes, de
acordo com as épocas propícias, como tainha, robalão, pescada, cavala, entre
outras.
através do mar e com as graças de Deus nossas necessidades sempre foram supridas, como com esse Xaréu |
Desde sua tenra infância foi lhe atribuída a tarefa de ministrar as
primeiras letras aos irmãos menores, visto a enorme dificuldade de instrução
naquelas plagas, herdando além das habilidades caiçaras no mar e no mato, a fé
católica professada em sua comunidade como liderança nos terços e cultos e
disseminada onde quer que andasse e que mais tarde mudaria os rumos de sua vida
e da família que constituíra.
Também a musicalidade caiçara se fez presente em
toda sua vida, pois grande devoto do Divino Espírito Santo, acompanhava com
fervorosa alegria a Romaria, quando por ali passavam as bandeiras do Divino
Espírito Santo e Santíssima Trindade, e mesmo a de São José de Ararapira ou São
Luiz Gonzaga de Ariri, quando também como líder religioso, espécie de Capelão, pois
era raro a presença de sacerdote naquelas distâncias, a executar os
terços-cantados.
No Fandango Caiçara, herdou o dom de tocar viola do
pai [Leandro Muniz], inclusive ganhando deste um instrumento, quando o pai percebera
que o pequerno Téco já havia aprendido o instrumento e, não gostava muito de saber que
pegara a sua viola as escondidas para treinar as primeiras modas. A rabeca, tão
bem executada por Leandro Muniz, foi o que Zé Muniz não conseguiu aprender,
dedicando-se a viola e frequentemente nos Fandangos dava sua contribuição nos
domdons e chimarritas, o que manteve viva em sua memória, mesmo quando da
comunidade migrara e ainda sem viola, as modas e os causos caiçaras, que sempre ouvira...
possui inúmeras anotações manuscritas sobre a cultura caiçara, com músicas e versos, seja do Fandango Caiçara, Romaria do Divino Espírito Santo ou Terço-Cantado. |
Casou-se em 1970 na mesma comunidade e, nove anos depois, a convite do
Pe. Mário di Maria (ver postagem: http://informativo-nossopixirum.blogspot.com.br/2012/12/padre-mario-di-maria-um-homem-mandado.html),
deixou a comunidade natal com o firme propósito de fazer missão católica, uma
vez que não pudera tornar-se um sacerdote, como sonhara (sua irmã Isolina tornou-se freira do Instituto
São João Batista), poderia agora, após o matrimônio, contribuir para que a
Palavra de Deus pudesse chegar às outras famílias e comunidades, uma vez que na
Barra de Ararapira, em sua totalidade, encontravam-se Católicos Apostólicos
Romanos, o que permanece até os dias de hoje.
entrevista para "Fandango de Mutirão"
foto: Lú Brito
|
Primeiro esteve em Superagui por dois meses, depois em Tromomô por cinco
meses e de lá para Guaraqueçaba, acompanhado de esposa e filhos (foram nove no total, dos quais dois já
falecidos), dedicando-se à pesca artesanal, agora diferente, no mar de
dentro, em Guaraqueçaba e continuando sua missão, como piloteiro da Paróquia do
Bom Jesus dos Perdões, auxiliando o grande Padre Mário nas visitas às
comunidades; Eu, por exemplo, demorei um pouco a entender, que aquilo não era
um trabalho para ele, e sim uma missão, do qual recebia uma pequena ajuda de
custo, complementando a renda com a decadente pesca artesanal, portanto, por
vezes, faltando diversos víveres, mas nunca a fervorosa crença num Deus que
tudo provê;
o Fandango Caiçara sempre esteve presente em nossa casa. Eram modinhas o dia inteiro...
Não foram poucas as oportunidades, mesmo eu sem nunca entender do que se tratava, de ver papai a cantarolar pela singela casa, melodias que só agora tem sentido para mim, tratava-se do Fandango Caiçara, rememorando sua família, sua comunidade natal, seus bons momentos, sua velha viola, que nestas andanças missionárias tivera que deixar para trás... Era tudo aquilo ali, em poucos versos, a sua tradição, sua cultura, agora também a minha.
BAZZO, Pg. 168, descreve as palavras do então pároco de Guaraqueçaba
José Carlos Chacorowski CM, na comunidade de Barra de Ararapira, quando de sua
despedida e consequente transferência da paróquia:
“seu Muniz, que é filho desta terra, foi mais
que um piloteiro que nos ajudou a enfrentar os mares. É um verdadeiro
missionário, que primeiro levou a palavra [de Deus] a muitas comunidades onde
antes não havia padre, celebrando cultos como ministro da Eucaristia”.
Certa vez em Valadares, me lembro bem, uma senhora, de meia idade
aparentemente, nos parou na rua e sem hesitar cumprimentou papai, dizendo
lembrar, apesar dos anos que já fazia, das vezes em que visitava, juntamente
com o Pe. Mário, sua comunidade, no caso a Ilha de São Miguel, hoje pertencente
à Paróquia de Paranaguá. Demonstrava imensa alegria naquele encontro e muito agradeceu.
Zé Muniz com a equipe da Romaria do Divino Espírito Santo de Guaraqueçaba, em 2012
(cerca de 80 anos que não acontecia)
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A instrução religiosa sempre foi seguida com fé e devoção em nossa casa.
Ao acordar ou ir deitar-se, pedir a benção; ao se alimentar agradecer sempre;
Seguir jejuns e respeitar dias santos, como manda a tradição, inclusive na
quaresma, depois que ganhou sua nova viola, o instrumento, durante estes 40 dias,
fica dependurado, desafinado, debruçado, com sua boca virada para a parede. É
o que manda nossa tradição!
Gravação do documentário "Divino: folia, festa, tradição e fé no litoral do Paraná" |
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Recebendo a Bandeira do Divino Espírito Santo e Santíssima Trindade em sua casa |
Foi muito difícil o início da vida na cidade de Guaraqueçaba, ainda mais quando, já somavam 06 filhos, acrescido ao fato da
ausência por conta das constantes viagens missionárias do pai, a receptividade
dos filhos pequenos nas novas vizinhanças trouxe muito sofrimento, todos
superados com fé e a firme crença de uma vida melhor...
Neste mesmo espírito de liderança religiosa, a experiência adquirida
residindo nas comunidades caiçaras e as constantes visitas missionárias, Zé Muniz
assumiu a presidência da Colônia dos Pescadores de Guaraqueçaba nos pleitos de
1984-1990 e 1995-1997, quando esta última por intervenção da Federação
Paranaense de Pescadores; Certa vez até ameaças de morte recebeu por defender
as causas dos pescadores e não se cansava de questionar sobre os direitos desta
classe negados pelo poder local; Também pleiteou, sem sucesso, vaga como
representante político, se candidatando como vereador e vice-prefeito.
Procissão marítima durante a Festa dos Pescadores (década de 90)
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Pelo ano de 1996, entrei no Grupo Teatral
Pirão do Mesmo e a começar a descobrir o Fandango Caiçara, mas já realizava,
naquela época, anotações e guardava recortes de jornais sobre histórias de
Guaraqueçaba... Alguns anos depois, veio a formação de nosso Grupo Fâmulos de
Bonifrates e, numa oficina para construção de um novo espetáculo “O Canto do
Galo”, o ministrante Itaércio Rocha nos propunha inserir lendas, músicas, as “coisarada do pescador” como dizíamos e
nos deixou seu gravador de bolso com fitas que foram poucas, pois iniciamos uma
série de gravações e nos enveredamos definitivamente a descobrir a nossa
tradição.
Zé Muniz tocando viola com o filho Zé Carlos Muniz, acompanhados de Zéco Constantino (adufe) e Dorçulina Eiglmeier (In Memoriam) durante o lançamento do Projeto Museu Vivo do fandango, Guaraqueçaba 2006.
Os primeiros depoimentos foram numa tarde de chuva, quando chamei papai
e pedi para que cantasse algumas daquelas infinitas modas que sempre o ouvira
a cantar pelos cantos de casa. Ele estava deitado, levantou e começou a cantar... mas
quem despertou ali fui eu, para a minha cultura, um farto material que até hoje
usamos em nossos espetáculos, tanto do Fandanguará, quanto do Fâmulos de
Bonifrates, gravamos e publicamos, vivemos e relembramos constantemente muito
de nossa cultura que aprendemos ali. Naquela tarde chuvosa ví papai chorar ao
se lembrar de cantos sagrados de nossa cultura como as “Excelências”, por
exemplo.
Papai tocando sua viola de fronte ao "futuro" Rancho Caiçara (2006) |
Mais recentemente (2011/2012) construímos um rancho – “Rancho Caiçara” – com o propósito de guardar meu acervo enquanto historiador sobre a cultura caiçara, tornando-se este o lugar predileto de papai e não raro, acompanhado do neto Leandrinho, o vi a tocar sua viola, dando as primeiras dicas para seu descendente sobre o instrumento.
1º grupo (Grupo Brasil Verde) a visitar o Rancho Caiçara (Jan. 2012) |
Fandango no Rancho Caiçara (2013). No adufo Zé Norberto Mendonça |
Fandango no Rancho Caiçara. Leandro Diéguiz (Rabeca), Felipe (Surdo), Marcelo Mendonça (viola), Zé Norberto (Adufo) Zé Muniz (viola) |
Rancho Caiçara - salão de exposição |
REFERENCIAL
AGUIAR, Carlos Roberto Zanello de. Fandango do Paraná: olhares / Carlos
Roberto Zanello de Aguiar; textos de Edival Perrini. – Curitiba: 2005.
BAZZO, Juliana. Mato que vira mar, mar que vira mato: o território em movimento na vila
de pescadores da Barra de Ararapira. Dissertação de mestrado apresentado à
UFPR Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010.
BRITO, Maria de Lourdes da Silva & RANDO,
José Augusto Gemba (orgs). Fandango de
Mutirão. Curitiba: Gráfica Mileart, 2003.
MUNIZ, José Carlos. Uma romaria do Espírito Santo. / José Carlos Muniz. – Curitiba, PR:
Imprensa Oficial, 2010.
________ Terço-Cantado: manifestação de fé do povo caiçara. Obra inédita. do
autor. 50 folhas digitalizadas.
________ Fandango na alma caiçara. Obra inédita. do autor. 150 folhas
digitalizadas.
________ Guaraqueçaba um pequeno mundo dentro do mundo. Obra inédita. do
autor. 500 folhas digitalizadas.
________ Vila de Ararapira desenvolvimento e abandono. Monografia de
graduação de licenciatura em história apresentada à Faculdade Estadual de
Filosofia Ciências e Letras de Paranaguá. Paranaguá, 2008. 82 folhas.
PIMENTEL, Alexandre; GRAMANI, Daniela;
CORREA, Joana. Museu vivo do Fandango. Rio
de Janeiro: Associação Cultural Caburé, 2006.
“Museu Vivo do Fandango”. Documentário
do projeto da Associação Cultural Caburé. 2006.