15 de julho de 2011

João Buso - seu legado cultural permanece...

“Mamãe quero me casar / filha dize-me com quem
com filho do sapateiro / filha não casai meu bem
sapateiro bate couro / outro ofício ele não tem
co o filho do fazendeiro / que ao menos dinheiro tem
mamãe quero me casar”.
(João Alves Batista – João Buso).
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foto: Felipe Varanda / Museu Vivo do Fandango

        Numa época em que o protestantismo não estava inserido na região, o catolicismo não dava "conta" de visitar todas as comunidades, restava a eles - CAPELÃO - fazer a reza dos terço-cantado, novenas, cultos e outras celebrações de cunho religioso que necessitassem na comunidade.
        Não era diferente na Ilha Rasa, onde ali perto, nas Gamelas, residia Seu João Buso, como todos o conheciam. Seu nome João Alves Batista. nascido naquelas bandas pelos idos de 1930, seu João Buso era um exímio violeiro de fandango, cantador de Romaria do Divino Espírito Santo, Puxador do Terço-Cantado (o último Capelão) e um grande contador de histórias e causos de nosso povo Caiçara.

        Das conversas que tivemos, não podia deixar passar as falas sobre o terço cantado, a Romaria do Divino e a festa do Bom Jesus na sua Ilha Rasa querida, que há tanto tempo não visitava... e dizia: "logo eu vou visitar lá".


“Era na Ilha de Pagoçá, lá que tinha um Santo do Bom Jesus, mas é uma história muito comprida. Tinha lá era uma imagenzinha do Bom Jesus, mas era assim pequeninha assim (faz com os braços uma medida equivalente a cerca de 50 cm de altura), ela ficava dentro de uma manga de vidro, com uma coroazinha em cima da cabeça. Essa imagem ficava em cima de um cepo de madeira, lá dentro do rancho. Era um ranchinho assim, um rancho que os pescadores usavam quando iam soltar o espinhel ali por perto, então iam no rancho assar um peixe pra jantar, iam lá pra descansar, então ficavam ali no ranchinho e lá dentro tinha a imagem do Bom Jesus. E lá era um lugar bom pra pescar, que eles chamavam de “Moleque”, mas hoje já não existe mais, pois a maré já levou tudo, nós chamava de “Sabiá”, sabe, porque quando nós ia pescar, soltava a rede, lanceava e enquanto esperava pra buscar a rede, ia lá passarinhar, matar sabiá, que tinha muito lá naquele tempo. E o santo ficava lá, até que uma vez um prefeito de Guaraqueçaba, não me lembro o nome dele agora, mas eu sei. Então esse prefeito mandou buscar essa imagem do Bom Jesus de lá do ranchinho e mandou que levassem pra igreja de Guaraqueçaba. Mas no outro dia cedo, olhe não é de acreditar, foram na igreja rezar e aquela imagem do Bom Jesus não estava mais lá. Avisaram o prefeito e todo mundo procurou e nada de encontrar. Daí tinha um pescador que veio da Ilha Rasa e passou lá no Pagoçá e viu a imagem lá de novo, contou pro prefeito e foram lá ver, até polícia tinha, foram tudo ver e ao Bom Jesus tava lá no ranchinho do Pagoçá. Então já que o santo tava lá, o prefeito disse: “Pois que fique aí então”, então meu avô, que era José Xavier, olhe ele morreu com 115 anos, pediu pro prefeito né: “Seu prefeito então deixe nós levar o Bom Jesus alí pra Ilha Rasa, que é perto e quem sabe ele se acostuma ali né?”. E o prefeito deixou. Levaram o Bom Jesus pra Ilha Rasa".

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foto: Zig Koch / Projeto Tocadores
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TERÇO-CANTADO
"Deus vos salve – Maria Mãe de Deus Pai
Deus vos salve – Maria Mãe de Deus Filho
Deus vos salve – Maria Esposa do Espírito Santo
Deus vos salve – Maria Templo do Sacrário da Santíssima Trindade"

“quando o Terço-Cantado era bem feito, no inteiro, dava uma hora por aí, há vai mesmo uma hora, era o Terço-Grande, quando diziam que era o Terço cantado inteiro. Lá na Ilha Rasa, os Capelão que tinha lá era meu avô, José Xavier, depois João das Pedras meu outro avô, Manuel Alves que é meu pai e hoje sou eu, João Alves Batista”.
(entrevista cedida em 2006)

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Quando do falecimento de alguém na comunidade, era cantado a "Excelência" sobre o corpo presente:

(acompanhe no vídeo)

vídeo: fragmento do documentário "Divino folia, festa, tradição e fé no litoral do Paraná".

(repetia-se o verso por quinze vezes).
Podia-se cantar também o seguinte verso:

"Senhor Bom Jesus
que na cruz morreste
Salvai esta alma
por que padeceste”.

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Ilha Rasa
Arquivo: Projeto Traços Culturais das comunidades do litoral do Paraná
(UFPR LITORAL / Universidade Sem Fronteiras)

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       Conhecedor das antigos fandangos, era muito procurado, tendo contribuido para inúmeras pesquisas que retrataram a cultura caiçara, sendo que no ano de 2009, por iniciativa do Grupo Mandicuera foi selecionado no Prêmio Culturas Populares Mestra Izabel artesã ceramista do Vale do Jequitinhonha/MG prêmio da Secretaria da Diversidade Cultural/Ministério da Cultura.
        Muito de seu conhecimento, repassado ao Grupo Mandicuera, hoje faz parte dos espetáculos e do acervo deste, que em breve lança um documentário sobre a vida e o conhecimento de João Buso acerca do Terço-Cantado, tradição esta que seu João fez questão de ensinar para Aorélio Domingues, após este ter concordado com o pacto que segue o repasse deste conhecimento: "aquele que aprender terá que cantar no velório do Mestre que o ensinou"...

... e assim fez Aorélio, neste mês de junho, quando faleceu o Mestre João Buso. 
Seu João Buso e Aorélio Domingues
imagem captada do documentário "Divino folia, festa, tradição e fé no litoral do Paraná".

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BANDEIRA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO

detalhe "Divino Espírito Santo" no vitral do Museu/Capela do Divino Espírito Santo
Associação Mandicuéra de Cultura Popular / Ilha dos Valadares / Paranaguá

"Lá na Ilha Rasa, tinha as duas Bandeiras, da Trindade e do Espírito Santo, que saiam juntas só na procissão da festa; Agora de Romaria era a Bandeira do Espírito Santo que antigamente saia da Ilha Rasa pra fora; e lá ia Bandeiras de outros lugares também, então ia a Romaria ca Bandeira de Cananéia, de Guaraqueçaba, da Colônia de Serra Negra. Na Ilha Rasa tinha foliões dos bons, era Antonino Borges, que era o mestre, José Correa, que era na Rabeca, também tinha o Gabino Vicente, esses eram de Serra Negra, mas nós levava eles pra tirarem a Bandeira lá na Ilha Rasa. A Festa do Espírito Santo, saia no dia 08 de agosto, aí saia a Romaria. O festeiro pedia pra igreja a imagem do Divino e saia na Ilha Rasa inteira, depois passava nas casas, na Ilha das Gamelas, Medeiros, Tromomó, ia por tudo lá. Então o povo tava roçando, fazendo qualquer outra coisa, escutava aquele “bum bum bum”, da Bandeira, “escute vem a Romaria aí”. Largava tudo e ia embora pra atender a Bandeira. Ninguém trabalhava naqueles dias".

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Contando história do "Arurá" para as crianças
imagem captado do vídeo "Gigantes do Imaginário".

HISTÓRIAS
“Eu vi uma vez o saci no mangue”. O saci é um coisinha pitoco, usa um cachimbinho e não tem uma perna, olhe não sei que tirou aquela perna dele, mas que ele gosta de fandango, hô rapaz". Conta que certa vez foi com seu pai, a remo, da Ilha das Gamelas, próximo a Ilha Rasa: “lá no Saco da Pedra”, e enquanto o pai fora resolver alguns assuntos, ele ficou deitado na popa da canoa e como já tinham soltado a rede, apenas esperava o momento de recolhê-la. “Rapaz de Deus. Decapoco escutei aquele parapapa parapapa parapapa”, se assustando e logo perguntando ao pai quando este chega na canoa. Não houve dúvidas, o pai logo confirmou: “esse aí? Vede é o saci dançando fandango”.
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“Lá na Serra Negra, uma vez fizerão um Multirão pra roçá arroz, cabou-se o serviço e de tarde foram pra casa, pra volta de noite pro fandango”.
Havia lá uma moça muito bonita, que tinha um menino muito agarrado “não largava da saia da mãe, ia pra lá e pra cá atrás dela”.
A mãe, que havia trabalhado no roçado, queria ir no fandango de noite, mas o menino também não a largava. Ela falou: “Larga de mim menino, por que o diabo não leva essa porcaria”, e foi pro fandango, onde dançou a noite inteira.
Noutro dia cadê o menino. “Todo mundo procurando” e se passou três dias e nada de encontrarem esse menino. Quase que desistirão, até um dia que um certo Mané Maria, caçador, foi pro mato visitar um mundéu que havia armado e lá no Morro do Chapéu, numa grande lonjura, ouviu um choro de criança e voltando pra casa contou pra vizinhança.
O povo se reuniu e foram ver do que se tratava. Rapaz era lá longe, num lugar só de espinho maranhado e lá no centro tinha um lugarzinho limpo, que tava o menino sentadinho. Quando o menino viu a vó, que tinha ido procurá, saltou e correu abraçá ela.
Pois a mãe tinha dado o menino pro capeta e ele levou né.
*
 
        Na última vez que o visitei, para entregar exemplares do livro "Uma Romaria do Espírito Santo", o que era pra ser uma rápida visita, tornou-se uma longa conversa. Era um grande saudosista. estava triste. Sua esposa recém havia falecida.
 
 
BIBLIOGRAFIA
MARCHI, Lia. Tocadores homem, terra, música e cordas. Olaria Projetos de Arte e Educação: 2002.
 
MUNIZ, José Carlos. Terço Cantado: Uma manifestação de fé da cultura caiçara. obra do autor. inédito.
-------------------------- Fandango: na alma caiçara. Obra do autor. Inédito.
-------------------------- Bom Jesus dos Perdões de Guaraqueçaba. Obra do autor. inédito.
 ------------------------- Uma Romaria do Espírito Santo. Imprensa Oficial. Secretaria do Estado da Cultura. Curitiba: 2010.
 
PIMENTEL, Alexandre, GRAMANI, Daniela, CORREA, Joana (org). Museu Vivo do Fandango. Rio de Jasneiro: Associalção Cultural Caburé, 2006.
 
DOCUMENTÁRIOS
1 - Tocadores Litoral Sul (2003) - direção de Lia Marchi e L. M. Stein.
2 - Divino folia, festa, tradição e fé no litoral do Paraná (2008) - direção Lia Marchi e Maurício Osaki.
3 - Gigantes do Imaginário (2007) - Coordenação de Alessandra Flores, Gesline Braga, Otávio Zucon. FUNARTE Fundação Nacional da Arte.
 
LINKS
http://www.olariacultural.com.br/
http://www.museuvivodofandango.com.br/
http://www.mandicuera.com/

Um comentário:

  1. Na última vez que esteve aqui em casa, disse para meu pai, seu irmão: "Ê, Ernesto não passa desse àno."
    Acabou indo antes dele, deixou saudades e muita sabedoria.
    Obrigado pelo texto Muniz, até mais!

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